Inda recordo as palavras do filósofo Olavo de Carvalho: Não somos nós que devemos interpretar a Bíblia, é a Bíblia que deve nos interpretar. Conclusão surpreendente! Há momentos na vida de qualquer ser humano – ser humano interessado na verdade, fique claro – em que a aparente confusão das coisas se transforma em clareza. Um segundo somente… O véu se desloca diante dos nossos olhos, e compreendemos o que, até então, era somente um grande mistério. Foi exatamente o que percebi ao escutá-lo.
Crer em Deus, na atualidade, não é assim tão simples. Às vezes entendo os ateus. Onde Ele se encontra? Não são apenas as guerras, a violência urbana, as catástrofes naturais ou a miséria testemunhando contra a existência do sentido sobrenatural. Não, é toda essa nossa cultura, o ambiente ao redor, o relacionamento entre as pessoas – até mesmo no interior das famílias – questionando os valores religiosos. Como Deus aceita conviver com os homens desta sociedade tão individualista? Como consegue observar, impassível, a deteriorização desta humanidade? Se Deus existe, e se é mesmo Deus, com certeza faria algo… Mas onde Deus se encontra?
Suponho que a experiência mais angustiante do ser humano moderno é o silêncio de Deus. Somos, de algum modo, os herdeiros de René Descartes e da revolução científica, e, dessa maneira, carregamos no bojo de nossa alma um número incalculável de questionamentos. Tudo queremos compreender! E, é claro, nós queremos saber também sobre Deus. Que ou quem é Deus? Por que não nos fala diretamente, como a Bíblia diz que Ele costumava conversar com seus profetas ou mesmo com o próprio Filho? Isso é, às vezes, muito irritante! E chegamos até a esquecer, de modo bem conveniente, que o silêncio de Deus fez parte, inclusive, da existência daquele seu Filho, Jesus Cristo: Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste? (Mt 27, 46).
A teologia tem lá alguma responsabilidade nesse fenômeno que o filósofo Martin Buber chamou de eclipse de Deus. O termo teo-logia significa, ao menos teoricamente, ciência de Deus, e, portanto, o objeto da investigação teológica é – deveria ser – Deus. Parece simples, mas nem tanto. Seguindo esse conceito puro e tradicional, estudar a Bíblia teria como finalidade primordial conhecer as manifestações de Deus na história do povo hebreu e cristão, desde o Gênesis até o Apocalipse. E por que conhecer as manifestações de Deus? Porque, segundo Ele mesmo, sua Palavra (seu Verbo) nos oferece a salvação e, consequentemente, a eternidade. Mas o que acontece quando identificamos contradições na Bíblia – e acreditem, elas são encontradas ocasionalmente no livro sagrado? O problema incomodou certos teólogos na Idade Média, e Pedro Abelardo – o mesmo que se enamorou de Heloísa – dedicou grande parte da carreira refletindo sobre o assunto. Sua conclusão foi a seguinte: quando dois ou mais trechos da Bíblia parecem contraditórios, o que deve determinar a verdade é a razão. O místico cisterciense São Bernardo de Claraval incomodou-se bastante com a solução de Pedro Abelardo, conseguindo que suas teorias fossem condenadas no Concílio de Sens (1121). Segundo São Bernardo, a autoridade suprema não era a razão, mas a fé naquele que é a própria Revelação. Por mais que se considere a racionalidade como dom divino, o conhecimento do Deus supremo, dentro da tradição judaico-cristã, sempre se alicerçara na fé: credo ut intelligam, ou seja, creio para compreender. Na visão conciliar, portanto, o que o teólogo Pedro Abelardo parecia estar sugerindo era justamente o contrário: compreender para crer.
Pois é, pobre Pedro Abelardo, condenado no Concílio... Condenado, só que suas teorias, ao invés de serem esquecidas, acabaram determinando a pesquisa teológica moderna.
Os teólogos protestantes da escola liberal encarnam, nos tempos mais recentes, a mesma premissa: o primado da razão. Pedro Abelardo já recebeu a condenação do concílio, e, sendo assim, não creio ser necessário condená-lo novamente aqui. Mas ouso, ao menos, defendê-lo daquilo que se tornou o desenvolvimento histórico de suas ideias. São Bernardo de Claraval, suponho, certamente não via em Abelardo o tipo de inteligência maligna capaz de negar a existência de Deus ou a veracidade da Bíblia. De fato, Pedro Abelardo não havia imaginado nada semelhante. Sua intenção era apenas tornar a fé mais clara utilizando-se do raciocínio lógico. São Bernardo compreendeu, não obstante, que conquanto aquilo parecesse até positivo, dar o primado à razão significava proporcionar-lhe a chance de negar a validade da fé. Só os místicos, como o cisterciense, dispõe dessa mente visionária!
A utilização da crítica racional acabou estrapolando, e a teologia liberal chegou até mesmo a decretar a morte de Deus. Tudo nas Sagradas Escrituras nos parecia contestável então, da existência histórica dos Patriarcas aos milagres realizados por Jesus Cristo. Se a razão não podia comprovar a veracidade dos acontecimentos, então crer se tornava impossível. Jesus transformou-se num ser humano comum da Galiléia – concediam-lhe, no máximo, o status do rabino de sabedoria espantosa, só isso – e o contato com a realidade sobrenatural numa esperança duvidosa. Daí, é claro que os teólogos foram-se limitando ao âmbito puramente material, surgindo depois tendências que buscavam aproximar o cristianismo ao marxismo, até que finalmente a teologia converteu-se num instrumento de revolução social.
Se você conhece um bocadinho do que foram as décadas recentes nas universidades católicas, compreende bem… Todos os ramos do conhecimento desenvolvidos na modernidade usados mais como instrumentos de negação da realidade sobrenatural do que como companheiros da fé. Psicologia, linguística, arqueologia, teoria literária, sociologia, economia, tudo se tornando o critério da verdade, em detrimento da leitura espiritual da Bíblia. Dizer isso não significa defender uma interpretação literal e fundamentalista das Sagradas Escrituras. Pesquisas realizadas nessas áreas podem ser muito importantes para o aprofundamente da nossa relação com Deus. Vide, como exemplo, os estudos de Joaquim Jeremias a respeito dos termos em aramaico empregados por Jesus no relacionamento com Abba (o Pai)… Sua teologia é um verdadeiro marco que, mergulhando no universo da linguística, desvela-nos a intimidade do coração de Cristo. O coração de Cristo… Qual o valor das exegeses, qual o objetivo dos doutorados se tanto conhecimento adquirido não me conduz à intimidade desse coração? Posso compreender perfeitamente a tradução de determinados termos bíblicos em grego ou latim, conhecer a fundo a sociedade judaica da época, tecer comentários sobre as similitudes entre as crenças egípcias e a teologia do povo de Moisés, mas se as informações não me tornarem próximo do Cristo real, do Cristo homem e Deus, então será somente poeira. Ele mesmo disse: Quanto a vós, não permitais que vos chamem ‘Rabi’, pois um só é o vosso Mestre (Mt 23, 8); e depois novamente avisa: Nem permitais que vos chamem ‘Guias’, pois um só é vosso Guia, Cristo (Mt 23, 10). Se a si mesmo se chama Mestre, a nós atribui o caráter de discípulos. Somos discípulos e, dessa maneira, é absolutamente necessário que nos transformemos em aprendizes do coração de Jesus. Temos sim que pisar as terras áridas descritas na Bíblia, sentar a seus pés como a multidão naquela montanha, escutá-lo atentamente, ver os milagres que todos os dias realiza, até que, na caminhada, mesmo aparemente esquecidos dentro da aglomeração, aconteça-nos percebê-lo olhando direto para nós. E o seu olhar… Seu olhar é como flecha iluminada atravessando nossa alma! Como a si mesmo se revelou, Ele nos revela também.
Tomar a Bíblia nas mãos é colocar-se no limiar desse caminho, é estar próximo de ser o discípulo. Claro, nesse momento há sempre de nos ocorrer o pensamento: mas são expectativas muito exigentes, e eu… eu que sou assim tão imperfeito… O estilo de vida e de pensamento dos tempos modernos quer-nos acreditando que o caminho proposto pelos evangelhos é impossível, humanamente falando, e que, mesmo sendo possível, os sacrifício demandados no decorrer do caminho entram em conflito com a sede de felicidade, natural a todos os seres humanos. Bem, é verdade que os sacrifícios eventualmente acontecerão, mas é absolutamente falacioso afirmar que só teremos sacrifícios e que seguir a Cristo é humanamente inalcançável. Se os ensinamentos de Jesus são bastante exigentes, também devemos observar que, em ocasiões diversas, nem mesmo os discípulos próximos a Ele conseguiram aprendê-los de primeira. Recordemos que o grupo escolhido por Cristo era composto por homens que duvidaram, abandonaram e negaram. Se Jesus Cristo é Deus – e eu creio firmemente nisso – é complicado imaginar que Ele não conhecesse a fundo os discípulos. Sim, Ele estava ciente da fragilidade encontrada nos homens e, não obstante, escolheu-os. Seus ensinamentos exigem comprometimento, mas o Mestre é todo paciência com os que se comprometem.
Ser parte daquele grupo de amigos, da comunidade dos que Cristo ia arrebanhando – e tudo isso no gesto de abrir as páginas da Bíblia – é a grande oportunidade que temos de encontrar respostas. Pois se você se coloca verdadeiramente ali, entre o povo de Israel, e ergue sua voz com coragem, questionando “Que ou quem é Deus?”, decerto será respondido. E se ousar, pressionando-lhe sobre as maiores questões do nosso tempo, sobre as questões existenciais de sua própria alma, também então terá respostas. Pois Cristo de si afirmou: Sou o Mestre! Qual o mestre que, deparando-se com tantas dúvidas no coração dos discípulos, não esclarece tudo com sabedoria? Qual o Guia que não conduz à Verdade?
Jesus Cristo: eis o Mestre! Luz dos tempos e caminho da eternidade. Ser aprendiz do Filho de Deus é, portanto, conhecer e ser conhecido, como disse o filósofo.