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segunda-feira, 11 de abril de 2011

Democracia e Revolução, por Gabriel Viviani

Sob a proteção do conceito “democracia”, certas sociedades caminham, descaradamente, à direção do autoritarismo. Conceitos de ciência política costumam, realmente, ser alargados ou mesmo deturpados quando isso convém a objetivos ideológicos. Ótimo exemplo é a China. Como pode denominar-se República Democrática ou República Popular a nação onde as decisões políticas tomam-se desrespeitando o desejo da maioria? Que há de seriamente democrático ao não se permitir à população o voto direto, coibindo, desse modo, a existência do divergente, vetando a livre expressão? Chamaremos democrático o sistema que, violento, exterminou milhões de praticantes do budismo, e que, ainda hoje, continua criminalizando a simples leitura da Bíblia? Aquilo que nos parece completamente absurdo, dizem, tem sua justificativa ideológica: o sistema comunista seria mais democrático do que o conceito tradicional conhecido porque desloca os poderes político, econômico e cultural da burguesia capitalista para a classe trabalhadora. O conceito é, assim, espichado ou corrompido a fim de satisfazer os interesses da ideologia.

              Usar a China como exemplo… Só que a China não se tornou o regime autoritário vigente através da subversão do sistema democrático. O comunismo implantou-se ali com armas, demência e sangue. Caso diferente do processo venezuelano, por exemplo. Utilizando as ferramentas da democracia, Hugo Chaves solapa a própria democracia. Via semelhante trilham também Rússia, Equador e Bolívia. Quanto ao Brasil, proposituras polêmicas como o PLC 122/2006[1] e o malfadado Projeto Nacional dos Direitos Humanos[2] (PNDH-3) insinuam a ambição autoritária esquerdista. Nestes casos, vão-se criando mecanismos de censura e controle da sociedade, através da rota legislativa, e usando-se o argumento das reformas necessárias à democracia.
              Chama-se revolução passiva o método de estabelecer sistemas despóticos prescindindo táticas de guerrilha armada. Seus adeptos argumentam: o objetivo da revolução passiva não é o despotismo, mas a libertação do trabalhador. Teoria somente… Sempre as revoluções acabam em autoritarismo. Sempre limitam o ser humano. Optar pela estratégia da ação passiva significa desenvolver o processo de maneira morosa e dissimuladamente, de preferência. O tempo de realização exige a convivência desconfortável entre dois modelos ou sistemas. Temos, de um lado, a estrutura tradicional da sociedade, e, inoculada no centro desta, outra estrutura incipiente ainda, trabalhando com afinco para a destruição da tradicional, enquanto fortalece a si mesma e ocupa os espaços usurpados. Claro que a convivência momentânea produz tensões! O movimento revolucionário não desconhece as inevitáveis tensões, e esforça-se por mitigá-las, limitando os meios de expressão daqueles que representam a sociedade tradicional. Ocupa cargos, infiltra-se progressivamente no coração da estrutura, espalha seus formadores de opinião, monopoliza as causas ditas sociais até estabelecer hegemonia sólida e duradoura o suficiente para impor medidas coercitivas. O estágio das medidas coercitivas é a passagem da revolução passiva para o regime autoritário escancarado. Se ainda subsistem elementos de reação – os conservadores –, já não representam qualquer ameaça: o processo revolucionário extirpou-os completamente tanto do debate público quanto da ação política. A sociedade descobre-se, portanto, dominada por leis que coibem a livre expressão do pensamento. Só se admite, então, o que pensa e diz a ideologia.
              Tocqueville compreendeu o risco inerente ao sistema democrático: tornar-se ditadura da maioria. Contudo, vejo uma diferença fundamental no prenúncio de autoritarismo observado por Tocqueville e no despotismo resultante da revolução passiva: esta última não se vale de ser maioria. O movimento revolucionário não conseguiu jamais ser majoritário. Jamais o proletariado lançou-se às armas, conquistando a tal libertação. Se as revoluções de 1917, na Rússia, e a de 1949, na China, a si mesmas chamaram-se “populares”, faz-se necessário perceber que aconteceram sempre sob a batuta da elite intelectual socialista, auxiliada por revolucionários profissionais. Quando se intitulavam “representantes do povo”, erguendo a bandeira do trabalhador, faziam-no por usurpação, sem possuir verdadeiramente qualquer direito[3]. Sendo assim, a hegemonia conquistada pela esquerda não ocorre através da conversão voluntária do trabalhador à causa revolucionária. É necessário dominar os centros de poder da sociedade, impondo mudanças.
              Grandes estudiosos[4] compreenderam a verdadeira intenção dos métodos comunistas: transformar a natureza humana. Criar a nova sociedade exige recriar o homem! O caminho escolhido para a reeducação do ser humano é a cultura. O movimento revolucionário percebeu a influência determinante da cultura no comportamento dos indivíduos, e ocupou-se, nas últimas décadas, aparelhando as indústrias do entretenimento – cinema e música, principalmente –, os meios de comunicação de massa – televisão, jornais, revistas e internet –, as editoras, as universidades, chegando ao cúmulo de infiltrar-se, com bastante eficiência, na intimidade do clero católico. Eis que, exercendo controle ideológico sobre tais centros de criação e canais de divulgação da cultura, o movimento revolucionário usa-os, constantemente, como megafones, espalhando mensagens subversivas. O novo comportamento dos indivíduos torna-se, assim, cópia fiel do espírito socialista, conquanto os mesmos indivíduos não se tenham, deliberadamente, feito de si socialistas. Secularismo, rebeldia, anticlericalismo, ódio de classes, desprezo da tradição, antiamericanismo: o processo da revolução passiva ou revolução cultural – conceitos que se confundem, então – consegue envolver a sociedade com sua doutrinação ideológica sem o consentimento dos cidadãos[5]. Sabemos bem que a finalidade dessa tática não é a transformação do povo em militantes da causa revolucionária. Já se disse, revoluções acontecem sob a direção da inteliggentzia, contando também com o exército de militantes treinados e experientes. O chamado povão, a arraia miúda é usada, no máximo, como massa de manobra. Portanto, o objetivo dessa mutação do comportamento na sociedade é apenas enfraquecer suas estruturas tradicionais. Forjando outros comportamentos, a esquerda quebra, paulatinamente, a influência da moral cristã, franqueando os espaço para a reestruturação da sociedade.
              Certamente, Gramsci foi o ideólogo de esquerda que maior importância atribuiu ao método da revolução cultural. Também é ele o predileto da esquerda latinoamericana. Contudo, antes mesmo do italiano Antonio Gramsci, já Lênin escrevera:
                    E para vencer a resistência dessas classes só há um meio: encontrar na própria sociedade que nos rodeia, educar e organizar para a luta, os elementos que possam – e, pela sua situação social, devam – formar a força capaz de varrer o velho e criar o novo[6].
              Verdade que o objetivo de Lênin não era o trabalho educacional visando a revolução passiva, mas sim a doutrinação daqueles elementos que consigam varrer o velho e criar o novo. Porém, faz-se necessário admitir que existe no trecho citado qualquer intuição a respeito do uso da cultura como meio de transformação da sociedade tradicional. Se a URSS empenhou-se depois na tarefa de transformar os centros culturais europeus e também norte-americanos em esteio do socialismo no Ocidente, demonstra-se como o conceito originariamente leninista desenvolveu-se à semelhança daquele proposto por Gramsci.
              O invólucro ideológico criado através da revolução passiva encarcera a sociedade. Se os arautos do tradicionalismo não foram devidamente calados ou excluídos, encontram-se tão estigmatizados pela campanha difamatória dos esquerdopatas que qualquer manifestação contrária à Nuova Ordine[7] é tachada rapidamente como “reacionária”, “preconceituosa”, “facista” ou mesmo “fundamentalista”. Submetidos à doutrinação cotidiana, e sem contar com a contrapartida dos que defendem os pilares da civilização ocidental, aqueles que não assimilaram as ideias libertárias espalhadas pelo comunismo – mesmo inconscientemente – compreendem-se, quiçá, encarcerados nesse ambiente cultural totalitário imposto pela revolução. Se, como hábito, continuam chamando de “democrático” tal sistema político, trata-se de escapismo: o sintoma comum dos covardes.



[1] A chamada lei contra a homofobia.
[2] O Projeto Nacional dos Direitos Humanos (PNDH-3) defende a descriminalização do aborto, a união civil entre pessoas do mesmo sexo, a investigação de crimes ocorridos durante o regime militar brasileiro – unilateralmente. O artigo que se refere à reintegração de posse nos casos de invasão de terra favorece claramente o invasor, e o artigo sobre a concessão de rádio e televisão produz mecanismos que possibilitam o controle político dos meios de comunicação.
[3] Que exemplo ilustrativo desse fenômeno há no Brasil! Os movimentos sociais e os partidos de esquerda alçam-se à categoria de representantes da população, e, contudo, comungam agendas rechaçadas pelo posicionamento da mesma população.
[4] Hannah Arendt e Olavo de Carvalho são exemplos.
[5] O filósofo Olavo de Carvalho nota que, no Brasil, os formadores de opinião afirmam o fim do comunismo enquanto, ao mesmo tempo, se expressam como verdadeiros comunistas.
[6] Vladimir. I. Lênin, As Três Fontes e as Três Partes Constitutivas do Marxismo, extraído de Obras Escolhidas, Alfa-Ômega, São Paulo, 1982.
[7] Antonio Gramsci utiliza o termo Nuova Ordine (Nova Ordem), denominando a estrutura da nova sociedade que virá substituir a antiga e defeituosa.

Site do autor: http://www.gabrielviviani.com/

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